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domingo, 4 de março de 2007

Devaneio da Tarde

Ó tardes tropicais,
crepúsculos que sois dalmáticas de sombras,
crepúsculos que sois cinzas espirituais
numa áurea dispersão sobre serras e alfombras!

As cousas dentro em vós têm espírito e alma
com sonhos a gemer na impotência da fala...
A paisagem, que está numa aparente calma,
toda uma ânsia de voz e de expressão exala...

Tenho até a ilusão de que não fala ou canta
porque uma força aziaga oprime-lhe a garganta!

A Tarde é a áurea nutriz, a teta espiritual
que alimenta talvez o malogrado ideal
da alma esquisita e informe das cousas que não falam...
As suas mãos de luz, as suas mãos embalam
a terra, no mistério interior em que dorme...

* * * * * * * * *

Ó árvore que sois espectros invioláveis,
- urnas em que o sol vaza o seu hino de chama
e responsos de luz o almo luar derrama
para a oculta eclosão de ideais imperscrutáveis!

A Tarde faz de vós as monjas piedosas
na ignota religião das cousas silenciosas!

E, ó árvores cristãs, que velais sobre as lousas,
há dentro em vós um luar de misticismo... Arde,
num êxtase, nossa alma ante as aras da Tarde
- que é o templo onde comunga a tristeza das cousas

E olhando a Natureza, olhando-a, olhando-a assim
como quem nela vê a suprema beleza,
olhando-a da emoção de um êxtase sem fim,
acode-me o desejo absurdo e extraordinário
de ser o orbe, o infinito, o céu – a Natureza,
para poder sentir a Tarde dentro em mim...

Meu panteísmo é um culto e a Tarde é o seu santuário.

Espíritos que estais na angústia de um ideal,
almas que o aguilhão do Amor fez desgraçadas,
o crepúsculo mana o vinho espiritual
de que necessitais, ó almas torturadas!

Envelhecendo a luz (que é bela mas acende
a vossa dor, o vosso anseio), há de quedar,
envelhecida quase, a mágoa que vos prende
ante o beijo de paz que a Tarde lhe vier dar...

Na religiosidade inefável e suave,
no abandono de cisma em que anda a Natureza,
meu pensamento é uma ave
que voou para os céus longínquos da Beleza,
e eu sendo tão pequeno, e vazio, e imperfeito,
transbordo-me da luz de uma febre magnífica
e me exalto na posse extática e beatífica
de uma alma emocional e rútila de eleito!

* * * * * * * * *

Hora feita de arminhos,
unges de um quê de sonho árvores e caminhos...
E o mundo... o mundo é como uma ferida imensa,
uma ferida viva
de ódio, egoísmo e descrença,
que tu cicatrizaste, ó Tarde compassiva!

Dentro da luz da Tarde,
a minha alma se alonga, é um êxtase disperso:
sinto que do meu ser cada partícula arde
e voa – ave de luz – para um outro universo...

E quando – embaixatriz suntuosa do Nirvana –
a Noite reconduz à Dúvida a alma humana
e faz do altar da Tarde uma necrópole, eu
ponho os olhos no céu:
e à saudade imortal que me oprime e domina,
eu vejo no luar, que trêmulo se eleva,
uma hóstia da Tarde, uma palma divina
suspensa sobre a treva...

Ou a alma mesma da Tarde a errar no céu tristonho,
espalhando o consolo e perpetuando o Sonho...

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